Chamada para o v. 18, n. 31 (2025) - DOSSIÊ: GENERO, PODER E RESISTÊNCIA
A proposta deste número temático é reunir um conjunto de estudos, pesquisas e experiências práticas, seja em âmbito nacional e/ou internacional, que tenham como foco central as mulheres, os gêneros e as formas de lutas que descortinam lacunas, assimetrias de poder e distorções inerentes a identidade e a equidade de gênero, como também mobilização e suas formas de enfrentamento.
A intersecção entre gênero, poder e resistência é um tema crucial para a compreensão das desigualdades sociais e das lutas por transformação. O gênero, como construção social que define papéis, comportamentos e expectativas para homens e mulheres, está intrinsecamente ligado às relações de poder existentes em nossa sociedade.
O poder, entendido como a capacidade de influenciar e controlar o outro, se manifesta de diversas formas nas relações de gênero. Assim, os vários processos e os modos de construção do feminino e do masculino continuam a servir de base à perpetuação das hierarquias de poder e dominação. A coexistência entre valores hierárquicos e práticas discriminatórias persiste e delineia fronteiras tênues entre o cisheteropatriarcado, o machismo e o sexismo expressos nas identidades e relações de gênero (BUTLER, 2003; SAFFIOTI, 2004; FEDERICI, 2004; hooks, 2019; GONZALES, 2020).
No Brasil, os processos de constituição hierárquica das diferenças de gênero e, consequentemente, assimetrias de poder, funcionam para perpetuar múltiplas subalternidades atravessadas por uma perspectiva interseccional (CRENSHAW, 2002; AKOTIRENE, 2019; KILOMBA, 2019; COLLINS & BILGE, 2021). Compreende-se a interseccionalidade como uma lente analítica e anticolonial que o feminismo negro utiliza para pensar a inseparabilidade do racismo, do capitalismo e do patriarcado cisheteronormativo.
Nesse sentido, a universalidade e a singularidade da categoria mulher, reforça a necessidade de reconhecer a heterogeneidade e a pluralidade dessa, através das especificidades imbricadas na experiência que se adensa e se complexifica quando incluirmos os marcadores sociais de raça, classe e etnia (CARNEIRO, 2011; GONZALEZ, 2020), cujas normas sociais e culturais tradicionais continuam a desempenhar um papel determinante na perpetuação das desigualdades relacionadas com o gênero.
Estas disparidades assumem uma maior magnitude com a ascensão da estrema direita no contexto latino-americano e mundial, pois ainda que não seja um fenômeno uniforme nessas realidades, ganha expressão em discursos e práticas ligados à ascensão do radicalismo e das pautas identitárias e conservadoras. Esse movimento vem sendo tensionado e contrabalanceado pelo movimento de mulheres, por suas práticas de resistência que perambula em espaços alternativos, no reino da “desrazão”, do não sancionado, do volátil, do invisível, do desaprovado, do proibido, do inaceitável e em outras formas de existência. Isso se assemelha a criar saídas, a ressurgir, a existir novamente, a escapar, a transcender as restrições e constrangimentos impostos por um discurso que almeja a universalidade.
Portanto, quer seja constituído por arranjos sociais de diferença sexual (SCOTT, 1986), quer seja uma construção histórica, cultural e social do sexo (BUTLER, 2003), o gênero e os temas que lhe estão associados continuam em ascensão no debate público. Além de ser uma das grandes questões que atravessam as ciências humanas e sociais e desempenham um papel fundamental na compreensão das sociedades humanas, mantem-se como uma demanda política determinante nas relações de poder, na qual intervém a ação pública, o que torna a conexão dos entrelaçamentos de gênero, do poder e da resistência uma questão permanente.
É particularmente importante centrar o questionamento na forma como as diferenças e as dominações se desenvolvem nos discursos e nas práticas políticas, mas também nas diferentes expressões de resistência empreendidas por sujeitas sociais para fazer frente as investidas de poder inspiradas em uma perspectiva crítica. Ao questionarem o mandato patriarcal (SEGATO, 2003; CURRIEL, 2007; LUGONES, 2020), as mulheres estão nesse mesmo processo inquirindo o conjunto de relações de forças hegemônicas na sociedade e, com isso, fendendo o sentido comum das coisas, fazendo irromper uma multiplicidade de possibilidades, de forças singulares, colocando a sociedade patriarcal como espaço de instabilidade.
Entendemos que tais práticas instauram fissuras, abalos nos modos de vida estabelecidos e potencializam outras formas de existência em determinados espaços sociais. Pretende-se, assim, dar visibilidade, reconhecer e valorizar iniciativas, lutas e inovações que provêm de partes da sociedade marginalizados por estruturas sociais como gênero, etnia, raça/colonialidade, classe, orientação sexual, idade, capacidades e espacialidades, dentre outras.
Avançando nesse debate, nosso objetivo nesse dossiê é oferecer um lugar de interlocução, de reflexão e de estudos sobre gênero, sobre poder e sobre resistência. É isso que está chamada pretende. Não apenas lançar luz acerca das estruturas que produzem a hierarquia dos sexos, mas também sobre os modos de ação das sujeitas sociais nesse campo de disputa, cujo discurso, contradiscurso constroem no Brasil e na América Latina. Partindo dessa compreensão e vislumbrando uma perspectiva interdisciplinar, as diferentes formas de agenciamento que mulheres empreendem por meio de suas práticas, ideias, concepções e padrões de comportamento cotidiano as quais instigam mudanças no interior das instituições, a inserção em espaços de poder; o debate sobre formas de resistência; participação das mulheres nos processos de construção de paz; o masculino e o feminino e suas representações nas estruturas de poder, dentre outros, são temas de interesse dessa chamada. Ao articular saberes e práticas produzidas a partir das diferentes experiências protagonizadas pelas mulheres nos seus diferentes campos de inserção e ativismo, buscamos romper com modelos tradicionais de produção de conhecimento.
Numa perspectiva multidisciplinar, o dossiê pretende refletir inscrever e refletir acerca das relações de gênero, de poder e de estratégias de resistência, suas interdependências e a sua materialização discursiva no contexto latino-americano e sobretudo no Brasil. Investigadores e ativistas terão a oportunidade de partilhar o seu trabalho sobre tais questão.
Referências
AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Pólen, 2019.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CARNEIRO, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: selo negro, 2011.
CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista estudos feministas, v. 10, p. 171-188, 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?format=pdf&lang=pt
COLLINS, P. H.; Bilge, S. Interseccionalidade. Tradução: Rane Souza. - 1ª ed. - São Paulo: Boitempo, 2021.
CURRIEL, Ochy. Critica pós-colonial desde las prácticas políticas del feminismo antirracista. Nómadas (Col), n. 26, Universidad Central Bogotá, Colômbia, 2007, p. 92 - 101.
FEDERICI. S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução de Coletivo Sycorax – São Paulo: Elefante, 2017.
GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Org. Flávia Rios, Márcia Lima. – 1ª ed.- Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
hooks, b. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Editora Elefante, 2019.
KILOMBA, G. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano. (1a ed., J. Oliveira, Trad.). Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
LUGONES, Maria. Colonialidade e gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. p. 52-83.
SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos ces, n.18, 2012.
SCOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Traduzido pela SOS: Corpo e Cidadania. Recife, 1990