VAMOS BRINCAR? AS POSSIBILIDADES DAS ATIVIDADES LÚDICAS COMO ESTRATÉGIA INCLUSIVA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA

LET´S PLAY? THE LUDIC ACTIVITIES POSSIBILITIES AS INCLUSIVE STRATEGIES IN PHYSICAL EDUCATION TEACHERS UNDERGRADUATE COURSE

Sandra Regina Garijo de OLIVEIRA[1] | Flávia Gonçalves da SILVA[2]

RESUMO: Este trabalho se refere à experiência de seis anos do projeto de extensão, intitulado “Atividades lúdicas no processo de (re) habilitação de crianças com comprometimento neurofisiológico”, desenvolvido em um Centro de Reabilitação (CER), por alunos do curso de Licenciatura em Educação Física (EF). O objetivo deste relato é apresentar as possibilidades das atividades lúdicas como estratégia inclusiva na formação de professores, evidenciando aos discentes que a pessoa com deficiência é capaz de aprender, apesar das peculiaridades do processo de desenvolvimento, a partir de Leontiev e Vigotski.  Semestralmente os discentes eram organizados em grupos de três ou quatro para desenvolverem as atividades na instituição uma vez por semana, além de participarem de uma reunião semanal com todo o grupo e com as duas professoras coordenadoras, para discussões teóricas sobre os conteúdos relacionados à intervenção.  Ao longo do projeto foi possível observar em muitos discentes uma mudança na forma como compreendiam a pessoa com deficiência, mudando o seu olhar “do que falta” para as possibilidades e potencialidades. Observou-se que projetos de extensão podem promover no graduando conhecimentos teóricos e técnicos que orientarão sua futura atuação profissional, de forma bastante peculiar, que não é vivenciada em situações de estágio curricular ou pesquisa. Palavras chave: Atividades Lúdicas. Inclusão. Educação Física.

ABSTRACT: This paper is related to the six years’ experience of an extension project, named “Ludic Activities in the (re)habilitation process of children with neurophysiological commitment, developed in a Rehabilitation Center (CER), by undergraduate Physical Education (EF) students. The purpose of this report is to present the ludic activity possibilities as inclusive strategy in the teachers’ undergraduate course, highlighting to the students that the person with a deficiency is able of learning, despite the peculiarities of development process, based on Leontiev and Vigotski.  Semiannually the students were organized in groups of three or four to develop the activities in the institution, once a week, besides participating of a weekly meeting with the entire group and with the two coordinators teachers, to theoretical discussions about the contents related to the intervention.  During the project, it was possible to observe in various students a change in the way they comprehended the person with deficiency, changing their glimpse of “what is missing” to the possibilities and potentialities. It was observed that extension projects can promote in the undergraduate student theoretical and technical knowledge that will guide their future professional practice, in a peculiar way that is not experienced in situations of curricular stage or research.

Keywords: Ludic Activities. Inclusion. Physical Education.

 

Recebido em: 01/02/2018

Aceito em: 01/08/2018

INTRODUÇÃO

Na vida diária as atividades lúdicas (jogos e brincadeiras) oferecem grande potencial educativo por contribuir no processo de desenvolvimento humano, possibilitando aos indivíduos expressar seus sentimentos e as formas como pensam o mundo, se apropriar da realidade e intervir nela, reproduzindo o que se vivencia, além de poder promover interação social e prazer.

As potencialidades das atividades lúdicas na infância já são amplamente conhecidas e difundidas nas mais diferentes áreas do conhecimento, especialmente na pedagogia e psicologia, que destacam sua importância para a criança vivenciá-la sem qualquer mediação de algum adulto, bem como uma estratégia intencionalmente planejada para alcançar determinadas finalidades, como conteúdos de diferentes componentes curriculares ou ainda valores éticos e morais.

Além das possibilidades educacionais, sabe-se que as atividades lúdicas também podem ser usadas com finalidades terapêuticas, seja em clínicas (nos casos de atendimento individual de crianças), em hospitais e centros de reabilitação. Geralmente, esses espaços não são bem vistos pelas crianças, tendo em vista que só vão a eles quando estão adoecidas e necessitam de atendimento especializado para o restabelecimento da saúde; atendimentos esses que lidam com suas dores, limitações, e nem sempre são possíveis ser realizados por meio de atividades lúdicas.

A possibilidade de oferecer nesses espaços atividades lúdicas, especialmente quando nos atendimentos não é possível utilizá-la, além de poder tornar o lugar mais agradável para a criança, pode melhorar seu humor promovendo a liberação de endorfina, que ocasiona a sensação de prazer, bloqueando, mesmo que temporariamente, a transmissão de estímulos dolorosos para o cérebro, além de o corpo ficar relaxado por um período de tempo após o riso, o que também alivia as sensações desagradáveis decorrentes do adoecimento e do tratamento (AYAN, 2009).

Considerando esses aspectos das atividades lúdicas, foi desenvolvido durante seis anos um projeto de extensão num Centro Especializado em Reabilitação (CER), localizado num dos municípios de Minas Gerais, com o objetivo de promover desenvolvimento (motor, cognitivo, afetivo) nas crianças, a partir de suas necessidades e possibilidades. O público atendido nesse centro apresentava algum tipo de deficiência (sensorial, intelectual ou física) ou transtorno global do desenvolvimento, nas mais diferentes idades, especialmente crianças.

Esse projeto foi conduzido por discentes de um curso de licenciatura em Educação Física (EF) de uma universidade pública, que tem como um de seus componentes curriculares as atividades lúdicas, além de poder utilizá-las como ferramenta pedagógica. Tanto nos Referenciais Curriculares para a Educação Infantil como nos Parâmetros Curriculares Nacionais a educação física é um componente curricular que integra o processo educacional das crianças, por ter como seu objeto a cultura corporal, que é

[...] um conjunto de práticas corporais (jogos, brincadeiras, ginástica, lutas, esporte e outros) construídas historicamente pelo homem, em tempos e espaços determinados historicamente, sistematizadas ou não, que são passadas de geração a geração (TAFARELL, TEXEIRA, D’AGOSTINI, 2005, p. 19).

Além do espaço escolar, o professor de EF também pode atuar em instituições de saúde (já que além de um profissional da educação é também da área da saúde), tendo a cultura corporal como eixo de sua intervenção, mas com finalidades específicas a partir das características e público de diferentes instituições[3].

A partir de tais considerações, o objetivo desse relato de experiência é apresentar as possibilidades das atividades lúdicas como estratégia inclusiva na formação de professores de EF, evidenciando para os discentes que a pessoa com deficiência é capaz de aprender, apesar das peculiaridades no processo de desenvolvimento, rompendo com preconceitos de que ela não é apta, é “digna de pena”, ou ainda que basta oferecer “amor e carinho” para que ela se desenvolva.

Apesar de tais discussões poderem ser conduzidas no seu aspecto teórico, ou ainda nos estágios curriculares quando a inclusão é problematizada, a extensão universitária tem potencialidades únicas, por promover no discente conhecimento teórico e prático sobre um determinado tema/problema no espaço social, propiciando maior conhecimento sobre suas possibilidades de atuação profissional.

Por outro lado, é de responsabilidade da universidade pública retornar à comunidade o investimento que esta faz ao setor público, com serviços que atendam as suas demandas, sendo esta a outra finalidade da extensão universitária como um dos tripés da universidade, tal como previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em seu art. 52 aponta que “as universidades são instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano” (BRASIL, 1996). 

(AINDA) OS DESAFIOS DA INCLUSÃO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Em termos mais amplos, a Constituição Brasileira de 1988, a Declaração Mundial de Educação para Todos de 1990, a Declaração de Salamanca de 1994 e a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 proporcionaram grandes mudanças para o cenário da educação brasileira, todos estes, garantindo o direito de educação para todos.  A partir desses documentos, os cursos de formação de professores por todo o país começaram a organizar em seus currículos, disciplinas e/ou conteúdos que tratassem dos processos educacionais da pessoa com deficiência, seja nas suas dimensões legais, como nas estratégias pedagógicas que efetivassem a inclusão.

Na Educação Física, Mauerberg-deCastro aponta que já em 1984 o planejamento do Ministério da Educação e Cultura, trazia uma proposta de programa de educação física para deficientes que, segundo Pettengill e Costa (1997 apud Mauerberg-deCastro, 2005, p. 49) “foi uma inclusão formal da educação física e do desporto para pessoas com deficiência dentro do planejamento educacional do ensino básico”. No que diz respeito especificamente à formação de profissionais, a Resolução nº3/1987 do Conselho Federal de Educação, que determinava um currículo mínimo para formação de Educação Física, apontou a necessidade do professor de EF atuar junto ao individuo com deficiência.  

A partir deste documento os conteúdos da chamada Educação Física Especial passaram a ser obrigatórios nos currículos de formação.  Entretanto, Pettengill e Costa (1997 apud SILVA e DRIGO, 2012) apontam que a Universidade de São Paulo, a Universidade Federal de Uberlândia, a Universidade Federal de Minas Gerais e as Faculdades Isoladas Castelo Branco, já na década de 1980 deram início a programas de formação profissional na área. 

Embora a legislação, determine conteúdos específicos na formação do futuro professor há quase trinta anos, e que grandes avanços tenham ocorrido desde então, não podemos ignorar o fato de que ainda hoje encontramos muitas dificuldades e por que não dizer resistências na efetivação da inclusão do aluno com deficiência nas aulas de EF e em outros componentes curriculares. A falta de formação adequada, de materiais adaptados, de condições estruturais são discursos frequentes para justificar a não efetivação da inclusão (BARRETO et. al., 2013; PEDROSA et. al. 2013; FIORINI e MANZINI, 2014; SANCHES JUNIOR et. al., 2015).

O quadro descrito anteriormente se deve em parte ao contexto histórico deste componente curricular, tendo em vista que sofreu influências militaristas, esportivistas, tecnicistas, o que acarreta até hoje em aulas esportivizadas, excludentes, com alto grau de competitividade, muito reforçado pelos pressupostos de hegemonia, homogeneização e produtividade tão defendidos na sociedade em que vivemos.  Romper com esta lógica requer compreender que há uma intenção da sociedade capitalista em manter os excluídos numa falsa ideia de inclusão. 

É nessa perspectiva que concordamos com Sawaia no uso do conceito de dialética inclusão/exclusão. Para a autora

a sociedade inclui o trabalhador alienando-o de seu esforço vital. Nessa concepção a exclusão perde a ingenuidade e se insere nas estratégias históricas de manutenção da ordem social, isto é no movimento de constituição sem cessar de formas de desigualdade, como o processo de mercantilização das coisas e dos homens e o de concentração de riquezas (2001, p. 108).

Pesquisas realizadas por Sawaia (2001) revelam que

o sofrimento gerado pela situação social de ser tratado como inferior, sem valor, apêndice inútil da sociedade e pelo impedimento de desenvolver, mesmo que uma pequena parte, o seu potencial humano (por causa da pobreza ou em virtude da natureza restritiva das circunstâncias em que vive), é um dos sofrimentos mais verbalizados. (pg. 109)

A autora sugere que para enfrentar a exclusão há duas estratégias que precisam estar associadas, uma de ordem jurídica e material (de responsabilidade do poder público) e outra de ordem afetiva e intersubjetiva que se caracteriza pela compreensão e apreciação do excluído na luta pela cidadania, a qual depende de um coletivo.

 Nesta perspectiva, enquanto docentes do ensino superior, corresponsáveis pela formação de futuros professores precisamos pensar e direcionar nossos esforços tanto na concepção do projeto político pedagógico do curso, quanto em nossas práticas pedagógicas de forma a favorecer que os discentes tenham condições de alcançar esta compreensão e que futuramente, enquanto profissionais, busquem uma atuação mais inclusiva e menos excludente.

Entende-se que um dos grandes desafios dos cursos de formação de professores que pode favorecer o processo de inclusão é abordar a compreensão que a pessoa que tem algum tipo de deficiência ou dificuldade na/de aprendizagem é capaz de aprender. As deficiências e dificuldades devem ser vistas como peculiaridades no processo de desenvolvimento e aprendizagem, que exige do professor identificar como elas se manifestam na criança, bem como as potencialidades que ela tem. Como afirmou Vigotski (1997, p. 47[4])

A educação de uma criança com diferentes defeitos[5] deve basear-se, simultaneamente, no defeito, mas também estão dadas as tendências psicológicas de orientação oposta, estão dadas as possibilidades compensatórias para superar o defeito e que precisamente são estas as que saltam num primeiro plano do desenvolvimento da criança e que devem ser incluídas no processo educativo como força motriz.

Seguindo a mesma lógica do processo de desenvolvimento e aprendizagem de uma pessoa que não tem deficiência, Vigotski defende que no caso de quem tem alguma, existem particularidades nesse processo que devem ser consideradas. Para o autor bielorusso, o processo de desenvolvimento e aprendizagem depende de dois fatores interdependentes: os biológicos (naturais) e os culturais. Os biológicos se referem às características que cada indivíduo tem ao nascer, mas que são transformadas pelas apropriações da produção da humanidade ao longo de sua história, isto é, a cultura, numa determinada condição e relação social.

Seguindo a mesma proposição, Leontiev que também conduziu vários outros sobre desenvolvimento psicológico e aprendizagem de pessoas com deficiências, afirma que

[...] a criança não nasce com órgãos preparados para cumprir funções que representam o produto do desenvolvimento histórico do homem; estes órgãos desenvolvem-se durante a vida da criança, derivam da sua apropriação da experiência histórica (LEONTIEV, 1991, p. 113)

O autor prossegue afirmando que a apropriação “é um processo que tem como consequência a reprodução no indivíduo de qualidades, capacidades e características humanas de comportamento” (LEONTIEV, 1991, p. 115), que no animal é transmitido por herança biológica. Nesse sentido, Leontiev afirma que “a criança não se adapta ao mundo dos objetos humanos e aos fenômenos que a circundam, mas faz deles seus, apropria-se deles” (idem, grifos do autor).

O que possibilita a apropriação do humano é a educação, entendida como processo de humanização, que não apenas apresenta o que foi construído culturalmente pelo homem, mas cria estratégias específicas para que tal conteúdo seja apropriado, a partir das particularidades dos indivíduos. Como exemplo, Vigotski (2011) menciona o quanto a cultura humana possibilitou a pessoa cega a ler, não com os olhos, mas pelo tato, quando foi desenvolvido o Braille.

Vigotski (2011) afirma que cada indivíduo tem particularidades no processo de desenvolvimento e aprendizagem, a partir das dimensões biológicas e culturais, mas na pessoa que tem deficiência, tais particularidades ficam mais evidenciadas, especialmente as divergências entre o desenvolvimento biológico e cultural. O autor ressalta que “as formas culturais de comportamento são o único caminho para a educação da criança anormal. Elas consistem na criação de caminhos indiretos de desenvolvimento onde este resulta impossível por caminhos diretos” (VIGOTSKI, 2011, p. 868).

Por caminhos indiretos do desenvolvimento o autor entende que é justamente construir alternativas para que o indivíduo se aproprie da cultura humana por meios que usualmente são utilizados, mas que para quem tem deficiência, esse caminho está impossibilitado ou limitado. Um exemplo é justamente o fato de o cego conseguir ler pelo tato.

Identificar e desenvolver esses caminhos indiretos do desenvolvimento implica em reconhecer que a pessoa com deficiência, independente do grau de severidade desta, é capaz de aprender. Isso não significa que será desprezada sua condição biológica, mas não é ela que vai prognosticar o quanto ou o que o indivíduo aprenderá e desenvolverá, e sim as possibilidades de apropriação da cultura, a partir do desenvolvimento de técnicas pedagógicas específicas que possibilitem tal processo.

Essa concepção de que todos podem aprender, pois tem capacidades, é fundamentada na relação entre desenvolvimento e aprendizagem desenvolvida por Vigotski (1995), que compreende que é a aprendizagem que impulsiona o desenvolvimento, a partir da zona de desenvolvimento próximo. A zona de desenvolvimento próximo é justamente a distância entre o que o indivíduo consegue fazer com autonomia, pois já aprendeu e o que consegue fazer com algum tipo de auxílio, seja de um instrumento, símbolo ou uma pessoa mais experiente. A compreensão da relação entre desenvolvimento e aprendizagem pela zona de desenvolvimento próximo possibilita ao professor ter tal concepção da pessoa com deficiência, bem como criar/possibilitar atividades em que esta possa demonstrar suas potencialidades, o que leva o educador a buscar meios para que as possibilidades descritas nos prognósticos das deficiências (seja física, sensorial ou intelectual), na maioria das vezes limitantes e padronizadas, sejam superadas.

Nesse sentido, a ideia de homogeneização dos alunos no processo pedagógico, tão buscado por muitos professores, é uma falácia, pois, apesar de muitos estarem no mesmo nível de desenvolvimento real, ou seja, terem aprendido quase os mesmos conteúdos de forma muito parecidas, as potencialidades que eles (os conteúdos) ocasionam em cada um pode ser muito diferente. Como Vigostki (1995) afirma, o fato de duas crianças revelarem num teste de inteligência que estão num mesmo nível, à oferta do auxílio, que evidencia as potencialidades, pode indicar que uma está um ou dois anos mais avançada que outra.

Além disso, agrupar crianças com diferentes níveis de desenvolvimento e aprendizagem pode impulsionar o desenvolvimento tanto das “mais desenvolvidas” como das “menos desenvolvidas”.  Silva (2016, p. 123) aponta que:

[...] agrupar os alunos “não habilidosos” pouco pode ampliar suas aprendizagens, pois a interação entre eles será mais pobre, se comparada com a interação com os “habilidosos”. Por outro lado, os “mais habilidosos”, quando são colocados como colaboradores no processo de aprendizagem, ampliam seus conhecimentos e habilidades, pois necessitam pensar em como podem ensinar aquele que não sabe tanto quanto ele, o que implica em ter consciência de como ele faz, como o outro faz, e como ele pode explicar/mostrar/ajudar o outro a fazer. Nesse processo, pode haver maior consolidação do que foi aprendido, já que pode encontrar outras formas de fazê-lo ou ainda perceber que não sabe tanto quanto imaginava. É fundamental a mediação do professor nesse processo, pois é ele quem vai conduzi-lo de forma colaborativa, valorizando as habilidades e capacidades de todos os alunos, que em alguns momentos demonstram serem mais capazes em algum conteúdo que em outro.

Assim, é imprescindível que o professor conheça as particularidades do processo de desenvolvimento de determinadas etapas, bem como as características individuais do discente, para que sua intervenção seja planejada a partir de objetivos que vão impulsionar o desenvolvimento pela aprendizagem.

Ao pensar a intervenção pedagógica com crianças, a atividade lúdica pode ser tanto um recurso pedagógico, como um conteúdo em si a ser aprendido. Pela atividade lúdica a criança apreende a realidade, ao mesmo tempo em que se objetiva por meio dela, ampliando seu mundo objetivo e subjetivo, tendo como principal processo psíquico mediador a imaginação (LEONTIEV, 1988). Isso porque enquanto brinca a criança pode operar com os objetos que faz parte de seu mundo e com os que fazem parte do mundo adulto, solucionando a contradição vivenciada por ela de ter a necessidade de operar diferentes objetos, mas não ter a habilidade de fazê-lo no mundo real. É pelo brincar que a criança pode ser e agir como mãe, pai, professor, motorista, astronauta, super-herói, e executa a atividade a partir das condições que se tem: com uma caixa de papelão pode-se fazer um carro e uma tampa de plástico o volante, permitindo a criança “dirigir” um automóvel ou ainda com um cabo de vassoura “galopar em um cavalo”.

Enquanto brinca a criança faz generalizações, independente das condições objetivas dessa atividade. Numa determinada brincadeira, por exemplo, apesar da criança imitar alguém que viu, ela não se refere especificamente a pessoa, mas todas aquelas que desempenham aquele papel, logo, ocorre uma ação generalizada. Por isso é importante observar a criança enquanto ela brinca, pois ela revela as formas como generaliza o mundo que vivencia, direta ou indiretamente, e como está se apropriando dele, quais são suas dificuldades, medos, anseios, dúvidas e preconceitos.

A imaginação é uma função psíquica importante, podendo acompanhar todo o processo do brincar. A imaginação é uma atividade tipicamente humana, criadora de algo novo. O tecido material da imaginação é a experiência acumulada pelo indivíduo, logo está sempre relacionada com a realidade, por meio de 4 formas: 1- se apoiando na experiência; 2- a experiência se apoiando na imaginação; 3- imaginação utiliza-se de imagens para expressar emoções; 4- criação de algo novo (VIGOTSKY, 2003).

A imaginação no brincar surge justamente das condições objetivas para tal atividade, e não o contrário. Dessa forma, na ausência de um brinquedo ou de um objeto específico, outro pode ser usado com mudança de sentido, caracterizando justamente a ação lúdica e propiciando o brincar (como o cabo de vassoura que se “transforma” em cavalo).

Ao pensarmos o uso da imaginação nas atividades lúdicas para crianças com deficiência intelectual, geralmente as que são propostas exigem criação bastante elementares, justamente pelos educadores compreenderem que a limitação intelectual a impede ou restringe sua imaginação com algo mais elaborado. No entanto, a partir da concepção vigotskiana, limitar a criança com deficiência no uso da imaginação criando poucos mediadores que a impulsionem, fará com que este processo psíquico fique sempre subdesenvolvido, assim como ocorreria numa criança sem deficiência. Além desse aspecto, o conhecimento sobre a realidade, no que se refere aos aspectos científicos, artísticos, morais e éticos devem ser ensinados para a criança com deficiência intelectual, para que sejam tecido da sua imaginação, ao mesmo tempo em que enquanto brinca, esse tecido é ampliado pelas apropriações que ela faz do mundo.

As atividades lúdicas tem maior importância em determinadas etapas do desenvolvimento, da mesma maneira que progridem de uma forma para outra. No período pré-escolar (três-seis anos) o tipo de atividade lúdica comum é o jogo protagonizado (jogo de papeis, ou o brincar), que implica na criança representar outra pessoa (ou personagem) ou substituir um objeto por outro. Nesse caso, apesar de existir regras que são seguidas pela criança, estas estão subordinadas a uma situação imaginária, que é representada por ela (LEONTIEV, 1988). Ao representar uma professora, por exemplo, a criança segue as regras de comportamento que ela entende que uma professora deve seguir.

Já no período escolar (sete-onze anos) a atividade lúdica típica são os jogos com regras que, como o nome já indica, o que conduz a atividade é a regra, enquanto a situação imaginária se subordina a ela (LEONTIEV, 1988).  No jogo de amarelinha, a criança pode imaginar quais são as melhores estratégias para jogar a pedra no quadrado correto, ou como ela pode se equilibrar melhor, a partir das regras que o jogo tem.

Os jogos com regras são mais elaborados que os jogos de papéis, por exigir mais habilidades e capacidades da criança, como entender a necessidade lógica das regras, controlar seu comportamento em relação a elas, já poder pensar por meio de conceitos, mesmo que precários, e resolver problemas a partir deles. Outra característica do jogo com regra é que além da criança se relacionar com objetos, também há o envolvimento de relações sociais com pessoas, o que pode fazer do jogo algo mais motivador que o jogo protagonizado. No entanto, os jogos protagonizados são fundamentais no desenvolvimento psicológico da criança no período pré-escolar, por ser principalmente nele que a crianças apropria-se do mundo e objetiva-se nele.

Saber usar e cumprir regras no jogo possibilita a generalização para outras situações que não são lúdicas, pois além de poder promover a aprendizagem de auto avaliação, valores morais e éticos, propicia também o desenvolvimento da própria personalidade, especialmente quando se usa jogos com regras complexas (duplos objetivos, por exemplo) (LEONTIEV, 1988).

AS CARACTERÍSTICAS DO PROJETO E DA INSTITUIÇÃO

Em 2009, a partir da demanda dos estudantes do curso de Licenciatura em EF de uma universidade federal de Minas Gerais, iniciou-se um grupo de estudos em Atividades Lúdicas e deste saiu a proposta de promover no então Núcleo de Reabilitação, atual CER, localizado no mesmo município em que a instituição de ensino superior está situada, atividades lúdicas voltadas para a recreação e desenvolvimento de crianças atendidas. As atividades visavam atender, especialmente crianças que vinham de distritos ou municípios vizinhos e que ficavam na instituição às vezes mais de 5 horas, até receber o atendimento ou esperar que o transporte retornasse para seu local de origem.

O CER compõe a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde, foi credenciado pelo Ministério da Saúde no ano de 2013 e se tornou referência regional na área da reabilitação. Possui uma equipe multidisciplinar (Fonoaudiólogos, Terapeutas Ocupacionais, Fisioterapeutas, Nutricionista, Dentista, Assistentes Sociais, Enfermeiros, Médicos, Pedagogos, Educador Físico, Psicólogos) que prestam atendimento às pessoas com transtornos globais do desenvolvimento e com deficiência física, intelectual, auditiva e visual.

O projeto intitulado “Atividades lúdicas no processo de (re)habilitação de crianças com comprometimento neurofisiológico” iniciou suas atividades em 2010 e ao longo dos seis anos de existência, o grupo que conduziu as atividades foi formado por alunos da graduação em licenciatura em Educação Física e coordenado por duas professoras (uma com formação em psicologia e outra em EF).  Participaram do projeto trinta e cinco alunos, com uma média de oito a dez em cada semestre, tendo pouca rotatividade entre um e outro. Salienta-se que o tempo médio de permanência de cada discente foi de dois a três semestres.  Eles eram organizados em grupos de trabalho de três a quatro para irem ao CER e desenvolver atividades lúdicas com as crianças na instituição uma vez por semana, por noventa minutos. 

Além disso, semanalmente havia um encontro com todos integrantes, incluindo as coordenadoras para discutir o que foi realizado, organizar e pensar novas estratégias ou atividades que seriam desenvolvidas, assim como, promover discussão de casos, de leituras e estudos acerca das deficiências encontradas no CER, sobre alguns aspectos do desenvolvimento e aprendizagem, bem como as atividades lúdicas e inclusão.

Enquanto objetivo do projeto, além do caráter recreativo (para as crianças) pretendia-se que as atividades lúdicas também pudessem promover algum tipo de desenvolvimento (motor, cognitivo, afetivo) às crianças, a partir de suas necessidades e possibilidades.

Salientamos também que até 2013, o CER, na época núcleo de reabilitação, funcionava de forma extremamente precária, no anexo de um hospital da cidade, com pouquíssima acessibilidade e as atividades do projeto de extensão eram desenvolvidas em uma pequena sala de espera, localizada ao lado da sala de fisioterapia, em meio à passagem de terapeutas e pessoas atendidas, colchões, macas e cadeiras de rodas.  Era neste espaço que os responsáveis pelas crianças as alimentavam, descansavam ou assistiam à TV. Após a inauguração do prédio próprio, com mais espaço físico e maior capacidade de atendimentos, o núcleo de reabilitação passou a ser CER, e o projeto se desenvolveu na sala de espera, porém com espaço suficiente para as macas, para as brincadeiras, para um jogo de pebolim, além de uma área aberta, onde havia um pequeno playground, uma cesta de basquete infantil, e permitia o desenvolvimento de atividades lúdicas que necessitavam de espaço para locomoção.

A cada início de semestre, diariamente, o grupo de discentes ao chegar na sala de espera convidavam as crianças para brincar.  Algumas já se prontificavam imediatamente, outras, requeriam um pouco de insistência do discente ou o acompanhamento/estímulo de algum responsável. Como o passar das semanas, assim que os discentes chegavam as crianças já estavam na expectativa do início das atividades.

As atividades desenvolvidas com as crianças eram: pintura, desenho, modelagem, colagem, jogos com regra como os de memória, dama, xadrez e também os jogos que exigiam maior amplitude/expressão de movimento como pular corda, lançar a bola ao cesto, cantigas de roda, pega-pega entre outros. Em várias situações houve a possibilidade de construção de brinquedos, a partir de materiais recicláveis, os quais as crianças poderiam levar para casa.  Houve também um grande empenho dos discentes em criar brinquedos ou adaptar jogos, para compor o material de trabalho do grupo.  Podemos citar a construção alternativa do “vai e vem”, do “tira varetas”, além da adaptação, do jogo Rumikub® em que foram inseridos informações de relevo e textura para cegos jogarem.

Todas as atividades desenvolvidas no dia de cada grupo de trabalho foram registradas em um relatório de atividades, que continha o planejamento das mesmas, como foram executadas e a avaliação da intervenção. Os resultados apresentados no presente texto foram extraídos desses relatórios de atividades e das discussões do grupo que eram sintetizados em relatórios pelas coordenadoras.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Ao longo do desenvolvimento do projeto, podem-se destacar dois grandes temas que foram estudados e que orientaram tanto a intervenção dos discentes na instituição, como das coordenadoras no processo de formação profissional dos mesmos: perceber e identificar as potencialidades da pessoa com deficiência e possibilitar a ela acesso às atividades que geralmente lhes eram cerceadas, seja na escola como na família; compreender a família como um grupo primário de importância na formação do indivíduo, mas que também sofre com a exclusão por ter como membro dela uma pessoa com deficiência que exige, muitas vezes, cuidados específicos.

Em relação à transformação na forma como percebe a pessoa com deficiência, os primeiros estudos e orientações foram relacionados a mudar a concepção do discente de EF que percebia a pessoa com deficiência, especialmente a criança, como alguém “digno de pena”, em que eram observadas apenas suas limitações. Durante os encontros do grupo com as coordenadoras, eram recorrentes falas como “ele quer brincar, mas não consegue”, “tentamos brincar ou jogar com ele de algumas coisas, mas ele não quis, não conseguia”.  Geralmente essas falas eram completadas com expressões como “deu dó” ou “que pena”. O sentimento de pena e muitas vezes inconformidade que uma criança tivesse determinadas limitações ocasionavam angústia, de muitas vezes não saber como lidar e medo de intervir e machucar. Um exemplo dessa última situação é o de uma das discentes do projeto, no seu primeiro dia na instituição, conversava de forma tranquila com a mãe de uma criança que tinha aparentemente dois anos e não apresentava de forma explícita qualquer deficiência. Enquanto conversava com a mãe, essa discente interagia com a criança, pegando nela, chamando sua atenção, mas quando a mãe mencionou à graduanda que a filha tinha uma deficiência, ela parou de interagir com a criança, com medo de machucá-la.

Sobre as angústias do não saber o que fazer que o contato inicial da pessoa com deficiência ocasionava nos discentes, podem ser percebidas em falas como “Ele não fala, não se movimenta, só fica deitado, não dá para fazer nada. Mas ele fica olhando, pedindo para que seja feito algo com ele!”

Para muitos discentes, participar do projeto os possibilitou ter contato com uma pessoa com deficiência, já que não era comum nos estágios curriculares encontrarem uma pessoa com tal condição na educação básica (considerando os discentes que já estavam nessa fase do curso de graduação).

Sempre que um novo grupo de discentes ingressava no projeto, compondo a maioria dos membros, as coordenadoras iam com eles na instituição nas primeiras duas ou três semanas para auxiliá-los no desenvolvimento das atividades lúdicas, especialmente mostrando adaptações que eram possíveis ser feitas e que não tinham sido inicialmente planejadas. Nesse momento, o objetivo das coordenadoras era mostrar para os discentes que toda atividade lúdica pode ser adaptada a alguma deficiência, mesmo que num primeiro momento seja feita de forma mais individual (a criança com o discente), para depois a intervenção ser de forma mais coletiva, quando era possível. Paralelamente a essas intervenções, nas reuniões do grupo eram estudados, por meio da leitura de textos, as deficiências ou condições clínicas das crianças que participavam do projeto (paralisia cerebral, síndrome de Down e autismo foram os mais investigados) destacando sua etiologia, características, prognóstico e formas de tratamento, mas também levando-os a observar o que cada criança fazia antes de ingressarem no projeto para o que e como elas estavam executando depois de um tempo de participação.

Sobre esse desenvolvimento das crianças, há casos em que se recusavam a participar das atividades e, posteriormente, começaram a ser bastante assíduas, que muitas vezes não queriam ir para os atendimentos para não parar de jogar ou quando algum discente faltava, ou entrava em férias, cobravam explicações sobre as razões da ausência dos mesmos. Há situações de crianças que pouco interagiam e, mesmo na ausência dos discentes do projeto, organizavam alguns jogos na sala de espera a partir da ampliação das redes sociais, tanto das crianças como dos familiares.

Durante as intervenções, os discentes passaram a perceber que a criança com deficiência participava das atividades lúdicas da mesma forma que qualquer outra, demonstrando descontentamento quando perdiam algum jogo com regra, explicitavam comportamentos competitivos quando num jogo coletivo alguém não usava uma boa estratégia ou executava um movimento de forma errada, era exigente consigo mesmo na forma como realizava as atividades, evidenciando orgulho quando algo era valorizado pelo grupo e pelos discentes, ou tristeza, quando não conseguia finalizar a atividade ou realizá-la da forma como tinha idealizado.

Essas situações eram problematizadas teoricamente com os discentes com o estudo sobre as potencialidades das atividades lúdicas no processo de formação da criança, bem como as concepções sobre desenvolvimento e aprendizagem, e as peculiaridades nesse processo, a partir de Vigotski e Leontiev, explicitada brevemente no presente texto. Os conteúdos da EF adaptada eram apresentados nesse conjunto de discussões, mostrando para os discentes algumas adaptações possíveis em alguns esportes paraolímpicos, mas que eram sempre trabalhados de forma colaborativa (e não competitiva), bem como apresentar diferentes jogos (protagonizados e especialmente com regras) para ampliar o repertório de conhecimento da criança.

Essas intervenções, orientadas por estudo teórico, foram modificando os sentimentos e conceitos dos discentes em relação à pessoa com deficiência, numa relação indissociável entre eles. Na medida em que os discentes passaram a compreender que a criança com deficiência era capaz de aprender, poderia usar de estratégias de trapaça para ganhar determinado jogo, os sentimentos de pena foram desaparecendo, o que os possibilitou a chamar a atenção, as vezes de forma mais severa, daqueles que burlavam a regra do jogo, ou intimidavam algum colega menos capaz, bem como passaram a negar às crianças que levassem os brinquedos ou jogos do projeto para a casa delas (houve situações em que discentes deixavam a criança levar o jogo e eles repunham para o projeto, usando recursos financeiros próprios, o que tinha sido emprestado, mas não foi devolvido).

Em um dos semestres, um dos grupos de discentes que intervinha com crianças entre oito e dez anos de idade fez uso principalmente dos jogos de xadrez e dama. Inicialmente um dos discentes de EF ensinou o grupo de crianças as regras básicas do xadrez (a maioria delas conhecia o jogo de damas), que após o aprendizado, ensinou uma outra discente do projeto (que não sabia jogar) e organizaram pequenos torneios entre eles, que também teve a participação de alguns familiares.

Ressalta-se que dentre as crianças participantes, havia aquelas que tinham comprometimento motor leve (seja em membros inferiores ou superiores) como também pessoas com pouca mobilidade, geralmente decorrente de paralisia cerebral mais severa, além da deficiência intelectual. Em algumas situações as atividades eram individuais, tendo em vista a diferença de idade, que revela interesses diferentes. As crianças entre três e cinco anos, que era a minoria em relação ao público que participava de forma recorrente do projeto, executavam mais atividades de pintura, colagem, modelagem e jogo protagonizado, por meio dos desenhos que faziam ou de fantoches, encenação a partir da leitura de algum livro. Já as maiores, as atividades mais desenvolvidas eram os jogos com regras. Em nenhum momento as crianças foram divididas por condição clínica, mas por interesses nas atividades lúdicas, que, no caso do projeto, eram condizentes com as proposições de Leontiev (1988) sobre os tipos de jogos mais comuns, tendo em vista os períodos do desenvolvimento – jogo protagonizado para as crianças menores e jogo com regra para as maiores.

A reflexão de tais resultados, a partir dos estudos teóricos, possibilitou aos discentes de EF observarem as potencialidades que cada criança tinha, apesar da limitação. A mudança de concepção da pessoa com deficiência fez com que sentimentos de indignação surgissem quando as crianças relatavam que não participavam das aulas de EF escolar, porque os professores não planejavam aulas que pudessem participar, ou quando a família não deixava as mesmas envolverem-se nas atividades lúdicas do projeto, justificando que seus filhos não eram capazes de fazer.

Cabe ressaltar que incialmente, havia uma grande indignação dos discentes em relação aos familiares que muitas vezes “abandonavam” seus filhos nas atividades do projeto para irem ao supermercado ou bancos, ou simplesmente terem um momento sem a presença da criança com deficiência. Por outro lado, havia também familiares que não permitiam que seus filhos participassem das atividades.  Estas situações levou o grupo a estudar teoricamente a dinâmica de uma família que tem uma pessoa com deficiência, e a pensar especificamente as condições objetivas e subjetivas desta no cuidado dos filhos.  

No caso das famílias que levavam seus filhos para o CER, observava-se que predominantemente os acompanhantes eram as mães, que tinham a função de principal cuidadora da casa e dos filhos.  Além dos cuidados básicos de toda criança, muitas ainda usavam fraldas, não se locomoviam, o que acarretava para as mães, muitas vezes ter que carregar os filhos no colo, alguns quase adolescentes, o que exigia força e posturas corporais, que muitas vezes poderiam ocasionar dores ou até lesões.   Além disso, sabe-se que o imaginário da função materna, criada historicamente dentro do modelo de família nuclear, exige da mulher abrir mão de suas outras funções sociais, como ser esposa, amiga e filha para garantir o “sucesso” de ser mãe. Propiciar espaços e momentos em que a mãe/mulher possa vivenciar, mesmo que de forma pontual essas outras funções, além daquela de ser mãe, é fundamental para garantir sua saúde, e consequentemente seu bem estar, bem como de toda a família.  Dessa forma, o suposto “abandono” dos filhos, enquanto as atividades do projeto eram desenvolvidas, poderia ser uma estratégia da mãe para ter um momento só para ela.

Com o desenvolvimento do projeto, as relações com as famílias foram se estabelecendo de uma forma melhor. A cada dia os familiares demonstravam maior confiança no trabalho dos discentes e isso permitiu que os mesmos rompessem com a visão culpabilizadora da família para uma compreensão de que esta é constituída por indivíduos que tem necessidades e vontades que podem ir além das questões familiares.

Tal aproximação gerou demandas por parte dos familiares para que houvesse atividades específicas para eles. Tentando atender às solicitações criou-se um outro projeto de extensão, concomitante ao projeto aqui relatado, com atividades específicas para este grupo, como exercícios de alongamento, relaxamento, orientações posturais, além de jogos de mesa, desenhos com maior nível de dificuldade para pintura, entre outros.

A participação e interação dos acompanhantes tanto com as crianças quanto com os discentes promoveu um trabalho mais dinâmico, que favoreceu estes familiares a gradativamente, verem seus filhos/netos de modo diferente, bem como a si mesmos, já que muitos deles acabavam brincando/jogando com o grupo e descobriam que ainda podiam se divertir, aprender, (re)descobrir suas potencialidades.  A partir de situações relatadas pelos discentes foi possível identificar também que as atividades lúdicas com as crianças iam além da sala de espera.  Várias vezes, as crianças ou os acompanhantes contavam sobre as partidas de dama ou brincadeiras que eram realizadas em suas casas.

O estudo de Barreto et.al. (2013) identificou que entre as principais dificuldades apontadas pelo professor de EF no processo de inclusão, está o fato de que muitos pais restringem a participação de seus filhos com deficiência, por acharem que não são capazes de realizara as atividades físicas. O estudo de Fiorini e Manzini (2014) se referindo a outras pesquisas realizadas aponta também o fato de que a família pode dificultar o processo de inclusão por negar a deficiência de seu filho ou por superprotegê-lo. Podemos observar que ao longo deste projeto houve mudanças, ainda que pontuais, na forma como a pessoa com deficiência é percebida: de incapaz para alguém que tem potencialidades, tanto pelos familiares e principalmente pelos futuros professores de EF. 


 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos cursos de graduação geralmente há uma maior preocupação dos discentes e docentes com os aspectos do ensino e da pesquisa (esse último especialmente para os docentes), em detrimento da extensão, e tal situação se reflete nos periódicos científicos, que pouco espaço oferece para a divulgação de intervenções dessa natureza.

No entanto, a extensão universitária pode promover no graduando um conjunto de conhecimentos teóricos e técnicos que orientarão sua futura atuação profissional, de forma bastante peculiar, que não é vivenciada em situações de estágio curricular ou de pesquisa. De forma alguma pretende-se colocar a extensão como superior ao ensino ou a pesquisa, mas o fato dela ser menos prestigiada no mundo acadêmico fez com que no Plano Nacional de Educação (Lei 13004 de 2014) instituísse em todos os cursos de graduação o cumprimento de 10% da carga horária deste em programas e projetos de extensão. 

O presente relato evidencia a importância de projetos de extensão na formação profissional, especialmente por reflexões teóricas e o contato direto com situações/públicos específicos que podem modificar de forma bastante significativa, concepções, valores e formas de intervir.

Observou-se em muitos discentes do curso de EF uma mudança substancial na forma como compreendiam a pessoa com deficiência mudando o seu olhar “do que falta” para as possibilidades e potencialidades.  Tal mudança foi possível a partir da práxis pedagógica em que a realidade impulsionava os discentes ao estudo teórico e a apropriação do conhecimento possibilitava uma nova forma de intervenção.  A partir do projeto muitos optaram por trabalhar com este público, atuando especificamente com crianças ou adultos com deficiência, no próprio CER como técnico de mobilidade e como professores de EF em Apaes. Além disso, alguns discentes que passaram pelo projeto, elaboraram seu Trabalho de Conclusão de Curso com as temáticas atividades lúdicas e inclusão, efetivando a tríade ensino-pesquisa-extensão. 

Espera-se que as experiências vivenciadas no projeto, tanto por discentes quanto pelos usuários do CER, favoreçam o processo de inclusão nas diferentes situações futuras de vida que cada um passará.  Que os futuros professores de EF consigam de fato incluir, desde os alunos que apresentam menor nível de habilidade motora àqueles que possuem alguma necessidade especial ou deficiência. E que tanto os indivíduos com deficiência quanto seus familiares, tenham consciência e condições de exigir seus direitos de participação em atividades lúdicas, esportivas, culturais, nos diversos ambientes, sejam eles escolares ou não.  Sabe-se que para tanto, não basta perceber a pessoa com deficiência com capacidades e potencialidades, mas sem esta concepção, efetivamente não há estratégias inclusivas.


 

REFERÊNCIAS

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VIGOTSKY, L. S. La imaginación y el arte en la infancia. Madrid: Akal, 2003.



[1] Mestre em Ciências da Psicomotricidade pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). E-mail: sandrarg_oliveira@hotmail.com

[2] Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP). E-mail: flaviagonsalves@yahoo.com.br

[3] Desde 1987 a partir da Resolução nº 03/87 e da regulamentação como profissão com a Lei n. 9696/98 há dois cursos de formação de Educação Física no Brasil: a licenciatura, que forma o profissional para atuar nas escolas e na atenção primária em saúde; e o bacharelado que habilita para atuar nos outros níveis de saúde, no treinamento esportivo, nas atividades de lazer e outras que não compõem o espaço escolar. Tal divisão na formação não é unânime na área, pois alguns defendem que existe apenas uma Educação Física, com especificidades definidas pelas áreas/instituições. Essa polêmica não será abordada no presente texto por fugir dos objetivos propostos.

[4] Todas as citações de obras de idiomas que não são o português foram traduzidas pelas autoras.

[5] Os estudos de Vigotski sobre as deficiências são conhecidos como Defectologia, termo utilizado na ex União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) nas décadas de 1920 e 1930. Em função dessa terminologia, a palavra defeito, bem como anormal, são recorrentes na obra de Vigotski ao se referir à deficiência, apesar de sua concepção sobre o desenvolvimento e aprendizagem de pessoas com tal condição ir contra qualquer ideia que a palavra defeito ou anormal podem significar para nós na atualidade. Apesar desses termos não serem mais utilizados, especialmente por não haver mais a compreensão que deficiências são defeitos ou anormalidade, ao traduzir uma citação direta do autor, será respeitado as palavras que o mesmo usou.